“A grande serpente que é o Diabo e Satanás”
Em Gn 3, a
Serpente simboliza o Mal com o qual se enfrenta o homem.
Nas mitologias
do Próximo Oriente Antigo, a serpente continha vários simbolismos diferentes.
Por exemplo:
- a
representação das Forças subterrâneas às quais os cananeus rendiam culto (alguma
coisa disso ficou também no caduceu dos gregos, atributo de Mercúrio);
- o Uraeus
egípcio, cobra-fêmea, que representa o fogo, sobre as coroas divinas e reais;
- os monstros
criados por Tiamat, no mito babilónico da criação;
- o raptor da
planta da vida na epopeia de Gilgamesh...
Símbolo de
divindades cananeias, de forças do mal entre os mesopotâmicos: é fácil compreender
que a Serpente tenha podido personificar, em Gn 3, uma força do mal, «astuta»,
inimiga do homem e, através dele, hostil ao plano de Deus.
O Apocalipse
retomará este mesmo símbolo (Ap 12): a nova humanidade, mãe de Jesus Cristo,
está no centro duma luta sobre-humana na qual Miguel e os seus anjos se
enfrentará com «a grande serpente, a Serpente antiga, que é o Diabo e
Satanás» (12,9).
Mas aqui há
outras imagens que se sobrepõem à do Génesis: as dos apocalipses dos judeus.
Os poetas de Israel
utilizavam estas imagens para apresentarem a criação como uma vitória de Deus
sobre os monstros do Caos (Si 74, 13-14; 89, 11; Job 7, 12), ou a sua vitória
final no termo da história (Is 27, 1; cf. 51, 9).
Pode-se falar
duma desmitização destes símbolos, já que não representam agora Poderes divinos,
mas tão-somente seres inferiores cuja actividade se desenvolve no interior da
criação e dentro dos limites compatíveis com a omnipotência do criador.
Mas a maneira
usada para exprimir esta realidade provém da linguagem mítica.
No tempo de
Jesus, a representação das Forças do mal era muito diversa: Satanás
(=Acusador), a que Jesus chama «o príncipe deste mundo», estava
rodeado de grande número de demónios.
Do ponto de vista
das representações e da linguagem, Jesus e os seus Apóstolos não modificaram em
nada os hábitos dos seus contemporâneos: não era nisto que se situava o objecto
da revelação.
Seguir-se-á daqui
que é possível «reduzir» as figuras bíblicas de Satanás a uma simples «maneira
de falar»?
Seria ir
demasiado depressa, neste caso.
Porque Jesus,
cuja experiência continua a ser a regra da nossa, empreendeu com o maior
realismo o seu combate contra as Forças do Mal.
O Mal não é
para ele uma simples manifestação de finitude e dos limites do homem. Ele viu
nele uma Força misteriosa com a qual tinha de enfrentar-se para pôr fim ao
domínio que ela exerce neste mundo.
O carácter
figurado desta «linguagem mítica» é uma coisa; o realismo da experiência que
traduz, é outra.
A realidade do
combate espiritual pertence ao terreno da nossa experiência quotidiana (cf.
Ef 6, 10-13).
Gn 3 abre a
história do plano de Deus evocando o começo deste confronto, levado a cabo dia
após dia por todos nós, mas no qual Jesus introduziu o princípio duma vitória e
duma libertação. (1)
(1) Veja-se o «Vocabulário de Teologia Bíblica» Ed. Vozes, artigos Demónio e Satā.