Homem, quem és tu? A génese da humanidade
«Adão e Eva», de Jan Gossaert (1478–1536) |
A génese da humanidade
«No
princípio...»: Com estas palavras começa o primeiro livro da Bíblia, o Génesis.
A história
bíblica começa com Abraão, por volta do século XVII ou XVII antes de Cristo, de
quem nos fala o Génesis a partir do capítulo 12.
Mas, antes de
evocar o desenrolar do projeto de Deus numa história humana carregada de sentido,
o livro convida os seus leitores a lançar um rápido olhar para trás, a olhar
para o «princípio»: princípio do mundo, princípio da humanidade, princípio da
sua aventura na Terra.
Os sábios
estudam estes problemas com os seus métodos próprios; os seus estudos parecem-nos
por vezes curiosidade de especialistas.
Contudo,
pensando bem, nós sentimos que se trata das questões essenciais da nossa
existência.
A génese
lenta da humanidade através dos milénios da pré-história não desembocará
naquelas poucas dezenas de séculos em que o drama humano se faz diretamente
percetível, um drama do qual todos somos solidários?
Pois bem, é
para esse ponto originário da história que os onze primeiros capítulos
do Génesis nos convidam a olhar!
Mas atenção!
Esses capítulos não nos querem dar um ensinamento científico para satisfazer a
nossa curiosidade; querem, sim, fazer-nos refletir sobre o essencial: a nossa condição
de homens, a nossa situação perante Deus, as nossas divisões trágicas, a nossa confrontação
com uma natureza hostil e, finalmente, o sentido de uma história da qual somos
ao mesmo tempo espectadores e atores.
Infelizmente
para os nossos contemporâneos, esses capítulos não evocam muitas vezes mais do
que grandes imagens de Epinal: a serpente no paraíso terreal, a árvore do fruto
proibido, a fuga de Caim depois do assassinato de Abel, a arca flutuante sobre
as águas do dilúvio, a torre de Babel...
Desde as
representações medievais até às pinturas do Renascimento, repetiram-se muitas
vezes esses temas como se os seus simbolismos ocultos fossem uma fonte de
inspiração inesgotável.
Mas o progresso das ciências deu-lhes um golpe mortal.
Hoje, é possível acreditar na
formação do corpo humano do barro, aceitar a geografia do paraíso primitivo, a realidade histórica de Caim
e Abel, a universalidade do dilúvio, o desaparecimento do género humano em
plena época urbana...
Além disso,
para muitos homens do nosso tempo, as grandes imagens do Génesis perderam, se
não o seu atrativo estético, pelo menos o seu sentido e o seu valor.
Que verdade
se lhes pode reconhecer, se elas estão cientificamente desqualificadas, se são
testemunhos anacrónicos duma cultura primitiva?
A questão
põe-se em termos brutais: pode ser-se ao mesmo tempo crente e homem de ciência?
Trata-se dum
problema sério, ao qual não podemos fugir. Mas, para o olhar de frente, é preciso
começar por varrer várias atitudes de espírito, falsas no seu principio e
desastrosas nos seus resultados.
Por um lado,
está a suficiência intelectual dum cientista obtuso: «tudo o que é anterior à
idade científica carece de interesse»: por outro, está a desconfiança mórbida perante as investigações
científicas ou históricas: quantos são os que se fecham, neste ponto, num
concordismo estreito (1).
A única atitude realmente sã é a duma
investigação crítica séria, empreendida à luz da fé, para iluminar a
literalidade dos textos bíblicos.
Mas para chegar
a isso, temos de dar uma volta, situando os textos dentro do contexto histórico
e cultural onde eles foram tomando forma. Todos os textos humanos são
assim.
No caso presente,
estes onze capítulos representam duas etapas na reflexão religiosa de Israel: escritos
no século X e no século VI antes da nossa era, são uma verdadeira
catequese destinada a instruir os crentes daquelas épocas.
Os seus autores
exprimiram-se habitualmente na linguagem corrente do seu tempo; eles utilizam os
materiais e os modos de expressão comuns entre outros povos, especialmente
na Mesopotâmia.
Uma comparação
minuciosa dos textos bíblicos com os seus paralelos mesopotâmicos permite discernir
o que têm de diferente e que traduz a sua mensagem própria.
Quando se chega
a este ponto, é preciso recordar ainda que esta mensagem foi redigida, em
várias ocasiões, num tempo em que a revelação estava ainda muito longe do
seu termo: começada com a vocação de Abraão, só alcançará o seu apogeu em
Jesus Cristo, «Novo Adão».
No fim da
investigação, observar-se-á que estes capítulos, sob as suas «imagens de Epinal»,
respondem à questão essencial que cada século vê reaparecer continuamente no
horizonte: HOMEM, QUEM ÉS TU?
________
(1) O «concordismo» é o erro dos que se empenham, a todo o custo, em fazer
«concordar» a Bíblia com a ciência ou com a história, como se elas abordassem a
realidade sob o mesmo prisma.
Pretende
ver-se, por exemplo, nos «seis dias» da criação, os períodos geológicos, quando
aqueles são, sobretudo, um motivo puramente literário.