São Gregório Magno, “cônsul” de Deus

 

São Gregório Magno, “cônsul” de Deus

São Gregório Magno

Em 590, aflitos com o miserável estado da Itália e de uma capital assolada pela inundação e a peste, o povo e o clero romanos elegem o patrício Gregório como Papa.

À santidade do monge, ele acrescenta a experiência do diplomata - ele fora apocrisiário em Constantinopla - e do funcionário - também fora prefeito de Roma.

Ameaçado ao norte e ao sul pelos ducados lombardos, humilhado pelo orgulho de Bizâncio e pela indignidade de muitos de seus colaboradores, o papado dá toda a impressão de estar moribundo.

Mas Gregório I - que a posteridade cognominou o Grande (Magno) - serve a cidade terrestre tendo em vista edificar a Cidade de Deus.

Bispo de Roma, ele toma em suas mãos ou controla as funções civis, sobretudo as relacionadas com a assistência e a educação. Ao mesmo tempo, dedica grandes cuidados à pregação, que quer prática: o tempo não é para os doutores, mas para os pastores - o Tratado de Pastoral de Gregório I ficaria na história.

As obras de Gregório Magno – os «Morais» e os «Diálogos» - haviam de ser lidas com avidez pelos homens da Idade Média. E o canto «gregoriano» conservou-se vivo até à Igreja dos nossos dias.1

Aliás, é forçoso confessar que a exegese e a teologia, por sua pobreza, são testemunhas da decadência geral da cultura antiga.

Fora dos muros de Roma, Gregório substitui-se ao fraco exarca para tratar diretamente com os lombardos. A sua correspondência revela que nada que se refira à vida da cristandade o deixa indiferente.

Voltando as costas para Bizâncio, deposita esperanças nos povos germânicos, mais jovens e menos embrutecidos; os francos, os lombardos, que ele prepara pacientemente para a conversão, os anglos, aos quais era muito apegado e para quem envia monges romanos levados por Agostinho, que se fixa em Canterbury.

Em breve, a Igreja anglo-saxã iria influenciar por seu turno todo o continente.

"Cônsul de Deus": é assim que o autor desconhecido do epitáfio de Gregório I o cognomina.

Numa Roma esvaziada não apenas de sua glória, mas também de sua alma, Gregório e os seus sucessores substituem-se ao Império derrocado: tornam-se os pedagogos do jovem Ocidente.

Começa a surgir a Igreja medieval. Pode-se até lamentar o seu endurecimento e o seu paternalismo, bem como o facto de que vários pontífices tenham esquecido a bela definição que Gregório I dera ao pontífice romano: Servus servorum Dei.

Mas foi essa Igreja, apesar de tudo, que fez com que os seus cânones conciliares, infiltrando-se no direito germânico, acabassem por humanizar os costumes bárbaros.

A um mundo em que campeavam a crueldade e o estupro, ela apresentava a sabedoria de seus monges e a pureza de suas virgens.

No horizonte merovíngio, ela conseguiu fazer brilhar uma outra luz que não a dos incêndios. (1)

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Aprendei a ser loucos para vos tornardes sábios diante de Deus

E que eu não encontre um só homem sábio entre vós» (Jb 17,10).

Apela-se à sabedoria não querendo encontrar sábios [os amigos de Job] porque os homens enganados pela suficiência da sua falsa sabedoria não podem chegar à verdadeira sabedoria.

É deles que está escrito: «Ai de vós, que sois sábios aos vossos próprios olhos e prudentes diante de vós mesmos!» (Is 5,21).

É a eles que se diz: «Não vos comprazais na vossa própria sabedoria» (Prov 3,7; cf Rom 12,16).

Era também por isso que, quando encontrava pessoas sábias segundo a carne, o grande pregador [Paulo] lhes pedia que adquirissem a verdadeira sabedoria, começando por se tornar insensatos:

«Se algum de vós se considera sábio segundo o julgamento deste mundo, faça-se insensato para se tornar sábio» (1Cor 3,18); e a própria Verdade diz: «Bendito sejais, ó Pai, Senhor do Céu e da terra, que escondestes estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelastes aos pequeninos» (Mt 11,25).

Assim como aqueles que são sábios diante de si mesmos não podem alcançar a verdadeira sabedoria, também o bem-aventurado Job, que deseja a conversão daqueles que o escutam, tem o direito de desejar que entre eles não se encontre um único sábio; ou seja, aprendei a tornar-vos loucos diante de vós mesmos para serdes verdadeiramente sábios diante de Deus."

São Gregório Magno (c. 540-604), papa, doutor da Igreja, Livro XIII, SC 212

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«Não vos esqueçais da hospitalidade» (Heb 13,1)

Dois dos discípulos caminhavam juntos. Embora não acreditando, falavam sobre o Senhor.

De repente, Ele apareceu-lhes, mas sob traços que não lhes permitiram reconhecê-Lo. [...]

Convidaram-no a partilhar a sua pousada, como é costume entre viajantes [...]

Puseram a mesa, apresentaram os alimentos e, na fração do pão, descobriram a Deus, que não tinham ainda reconhecido na explicação das Escrituras.

Não foi, portanto, a escutar os preceitos de Deus que foram iluminados, mas a cumpri-los: «Não são os que ouvem a Lei que são justos diante de Deus, mas os que praticam a Lei é que serão justificados» (Rom 2,13).  

Se quisermos compreender o que ouvimos, apressemo-nos a pôr em prática o que conseguimos perceber.

O Senhor não foi reconhecido enquanto falava; Ele dignou-Se manifestar-Se quando Lhe ofereceram de comer.

Ponhamos, pois, amor no exercício da hospitalidade, queridos irmãos; pratiquemos de coração a caridade [...]: «Que permaneça a caridade fraterna. Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos» (Heb 13,1; cf Gn 18,1ss).

Pedro diz: «Exercei a hospitalidade uns com os outros, sem queixas» (1Ped 4,9).

E a própria Verdade nos declara: «Era peregrino e recolhestes-Me. [...] Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25,35.40) [...]

Apesar disto, somos tão preguiçosos diante da graça da hospitalidade!

Avaliemos, irmãos, a grandeza desta virtude.

Recebamos Cristo à nossa mesa, para podermos ser recebidos no seu festim eterno.

Demos a nossa hospitalidade a Cristo que está no estrangeiro, para que, no dia do juízo, não sejamos como estrangeiros que Ele não sabe de onde vêm (cf Lc 13,25), mas como irmãos que em seu Reino recebe.

São Gregório Magno (c. 540-604), papa, doutor da Igreja | Homilia 23; PL 76, 1182

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«A árvore mantém a esperança» (Job 14, 7)

“«A árvore mantém a esperança; depois de cortada, voltará a reverdecer e os seus ramos despontarão» (Job 14,7-10). [...]

Na Sagrada Escritura, a árvore simboliza a cruz, mas também o homem, quer o justo quer o injusto, e ainda a sabedoria de Deus encarnada.

Com efeito, é à cruz que o profeta se refere quando diz: «Destruamos a árvore no seu vigor» (Jer 11,19), referindo-se ao corpo do Senhor.

A palavra «árvore» também evoca o homem, quer o justo quer o injusto, quando o Senhor afirma pela boca do profeta: «Sou Eu, o Senhor, que humilho a árvore elevada e elevo a árvore humilhada» (Ez 17,24), porque as suas palavras são conformes à palavra da Verdade: «Quem se elevar será humilhado e quem se humilhar será elevado» (Lc 14,11). [...]

A árvore é ainda imagem de Deus encarnado, sobre quem a Escritura diz: «É uma árvore de vida para quantos a alcançam» (Pro 3,18), e que diz de Si próprio: «Se assim é tratada a madeira verde, o que se fará ao lenho seco» (Lc 23,31). [...]

«A árvore mantém a esperança; depois de cortada, voltará a reverdecer».

Quando, na sua Paixão, o Justo é atingido de morte por causa da verdade, recupera a vida na frescura verde da vida eterna.

E aquele que, neste mundo, encontrava a sua força na fé, encontra a sua força no alto, na visão beatífica: «e os seus ramos despontarão»; porque acontece muitas vezes que, diante da Paixão do Justo, os fiéis se multiplicam num impulso de amor pela pátria celeste, experimentando a frescura verde da vida espiritual na alegria de o terem visto agir neste mundo com tal força de alma, para glória de Deus.”

São Gregório Magno (c. 540-604), papa, doutor da Igreja | Livro XII, SC 212

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Constatando a sua humanidade, desdenhavam de acreditar no Criador!

«Até os loucos me desprezam» (Job 19,18 Vulg).

Os sábios não tinham fé na verdade, mas podemos dizer que o mesmo acontecia aos loucos, uma vez que, constatando que fariseus e doutores da Lei desprezavam o Senhor, a multidão os seguia nessa incredulidade: vendo nele o homem, desprezava as lições do Redentor do mundo.

Com efeito, o termo «loucos» designa por vezes os pobres do povo. [...]

Ora, o nosso Redentor ignorou os sábios e os ricos deste mundo, pois vinha ao encontro dos pobres e dos loucos.

Apesar disso, observa nesta altura, como que para fazer crescer a sua dor: «Até os loucos me desprezam»; ou seja, fui desprezado por aqueles mesmo que queria sarar, assumindo a loucura da minha pregação.

Com efeito, a Escritura declara: «Já que o mundo, com a sua sabedoria, não reconheceu a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação» (1Cor 1,21).

Pois o Verbo é a sabedoria de Deus e aquilo a que, nesta sabedoria, se chama loucura é a carne do Verbo: vendo a incapacidade dos homens carnais para alcançarem a sabedoria de Deus por meio da prudência da carne, Ele quis sará-los pela loucura da sua pregação, ou seja, pela carne do Verbo.

Por isso, declara: «Até os loucos me desprezam».

Era o mesmo que dizer abertamente: sou desprezado por aqueles mesmos que quis salvar sem receio de passar por louco.

Na verdade, o povo dos judeus, observando os milagres do nosso Redentor, honrava-O perante estes sinais, dizendo: «Eis o Cristo»; porém, constatando a fraqueza da sua humanidade, desdenhava de acreditar no seu Criador e dizia: «É que Ele seduz as multidões» (Jo 7,12).

Bem podia Ele, pois, acrescentar: «E, quando me afastava deles, insultavam-me» (Job 19,18 Vulg).

São Gregório Magno (c. 540-604), papa, doutor da Igreja | Livro XIV, SC 212

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Virado pela graça!

“Não me desagrada seguir o exemplo de Paulo: munido das cartas que tinha pedido para ir contra Cristo, dirigia-se a Damasco quando, subitamente, a graça do Espírito Santo o inundou pelo caminho; perdendo a sua crueza, Paulo muda e eis que se oferece, por Cristo, aos golpes que vinha trazer aos cristãos.

Aquele que ontem, vivendo segundo a carne, se empenhava em levar a morte aos santos do Senhor tem hoje prazer em imolar a vida da sua própria carne para salvar a vida desses mesmos santos.

As frias maquinações da sua crueza transformam-se em caridade ardente e aquele que blasfemava e perseguia descobriu uma humildade e uma piedade de pregador; aquele que tinha por ganho sem igual matar a Cristo nos seus discípulos considera agora que a sua vida é Cristo e o seu lucro, morrer por Ele.

Assim, a água foi libertada e a terra foi refeita (cf Job 12,15), porque, mal acolheu a graça do Espírito Santo, a alma de Paulo transformou-se, abandonando a sua condição de ser imóvel e cruel.

Em sentido contrário, o Senhor exprime as suas queixas contra Efraim pela boca do profeta: «Efraim tornou-se um pão cozido sobre as cinzas que não foi virado» (Os 7,8).

O pão cozido sobre as cinzas fica com uma camada de cinzas por cima, e fica tanto mais sujo quanto maior é o peso das cinzas.

E que peso tem sobre si uma alma que só pensa nas coisas deste mundo? Talvez uma massa de cinzas.

Mas, se essa alma quiser ser virada, a face pura que tinha voltada para baixo fica voltada para cima, uma vez sacudidas as cinzas que a cobriam.”

São Gregório Magno (c. 540-604), papa, doutor da Igreja | Livro IX, SC 212

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O nosso Redentor foi um desconhecido

«Sou um desconhecido aos seus olhos» (Jb 19,15).

Não ser conhecido na sinagoga era, para o nosso Redentor, estar em sua casa como quem está de passagem.

É o que atesta o Profeta com aquelas palavras: «Porque te comportas nesta terra como um estrangeiro, como um viajante que apenas para a pedir dormida?» (Jr 14,8).

Visto que Ele não foi escutado como Senhor, não foi tido como proprietário da terra, mas como jornaleiro.

E, como um viajante, parou apenas para pedir dormida: não levou para a Judeia senão alguns homens e foi por causa da vocação dos gentios que fez essa viagem.

Portanto, Ele foi, a seus olhos, alguém que está de passagem, visto que, pensando apenas naquilo que conseguiam ver, eles foram incapazes de discernir no Senhor o que não lhes era possível ver.

E, desprezando a sua carne visível, não alcançaram a sua invisível majestade. É razão para dizer: «Sou um desconhecido aos seus olhos».

São Gregório Magno (c. 540-604), papa, doutor da Igreja | Livro XIV

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(1) Fonte: “História da Igreja”, Pierre Pierrard (texto editado, adaptado) | 1 “História breve do Cristianismo”, José Orlandis | Imagem

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