O dilúvio: mito ou lenda
Na nossa
linguagem actual, as palavras mito e lenda são uma autêntica
armadilha, uma vez que a sua definição é muito imprecisa:
- enquanto que
a lenda se apoia em recordações do passado, (transformadas, embelezadas,
reagrupadas),
- o mito
traduz em narrativa uma experiência humana universal.
Ao falar aqui
de lenda mesopotâmica do dilúvio (utilizada de novo na Bíblia),
sugere-se que múltiplas experiências locais foram resumidas numa narrativa
exemplar, elaborada provavelmente no decurso do terceiro milénio.
Esta hipótese
tem um fundamento arqueológico: em Ur, em Kish e noutros lugares
de escavações situados na Baixa Mesopotâmia encontraram-se vestígios
duma civilização avançada, sepultada debaixo duma espécie de capa de lodo argiloso.
Mas as datas
destes restos não são concordes em todos os sítios.
Compreende-se
facilmente que semelhantes inundações catastróficas, ampliadas pela imaginação
popular, tenham podido dar origem à lenda dum dilúvio universal.
A partir dos
países de Sumer e de Akad, a lenda em questão, emigrou
- para o Oeste
(o dilúvio grego é narrado pormenorizadamente nas Metamorfoses, de Ovídio)
(1)
- e para o Leste
(o dilúvio indiano, nos Brahamanes, tem por herói Manu, o primeiro
homem) (2).
Depois da Índia,
o tema deve ter facilmente passado à Indonésia e às ilhas do Pacífico.
No quadro
destas civilizações politeístas, a lenda coloriu-se fortemente de mitologia,
relacionando a catástrofe com rivalidades entre os deuses ou com uma inveja dos
deuses contra os homens.
Mas,
independentemente destas histórias divinas, o género literário do mito pode
também transpor sob a forma de narração uma experiência humana universal, tanto
mais impressionante para a imaginação, quanto melhor corresponde a um aspeto
angustiante da
condição humana.
A fatalidade
das catástrofes cósmicas, desde os ciclones e inundações (perigos da água), até
às erupções vulcânicas (perigos do fogo ou dos terramotos), que se abatem sobre
os homens sem razão aparente e que parece terem de aniquilar a raça humana, é
uma experiência deste género.
É normal que
este tipo de experiências tome igualmente forma em mitos cujo ponto comum é o
perigo da destruição que pesa sobre a raça humana.
Ora, é um facto
que existem mitos deste tipo em quase todas as tradições estudadas pelos
etnólogos, sob formas aparentadas umas vezes com o dilúvio mesopotâmico
e outras vezes diferentes dele, sendo a África o continente mais reservado
neste sentido (3).
É, pois,
provável, que por trás da lenda local da Mesopotâmia, haja um tema mítico muito
mais universal e mais antigo no qual os homens das diversas civilizações
sintetizaram a sua experiência da prostração sob as catástrofes naturais.
O dilúvio
mesopotâmico, retomado na Bíblia para evocar a antiguidade remota, é disso uma
atualização particular.
Quanto à
divinização do herói do dilúvio, foi retomada e desmitizada na lenda bíblica
de Henoc.
Ao reconhecer
esta dimensão mítica da narrativa, não tiramos nada ao valor da sua utilização
na Bíblia.
Muito ao
contrário, pois vemos aqui um traço universal da experiência humana, que
encontra
uma tradução concreta no quadro de Génesis 1-11: o enfrentamento do homem com
as forças cósmicas desencadeadas.
A Bíblia
reinterpreta, à sua maneira, este tema mítico, separado de toda a mitologia politeísta.
Na história da
humanidade pecadora, é este o tipo do Juízo de Deus.
Mas a salvação concedida
a Noé demonstra que, apesar do pecado, Deus quer que a história
continue: esta salvação prefigura aquilo que Cristo nos trará (1 Ped 3,
19.22).
Como o sublinharam
mais duma vez os Padres da Igreja, a Igreja é a arca da salvação
na qual encontram lugar os homens a fim de escaparem ao destino da raça
pecadora.
Quanto mais se
sublinha a dimensão mítica na narração primitiva, libertando-a das
contingências lendárias próprias da Mesopotâmia, mais apto se torna o seu
carácter exemplar para traduzir o conteúdo «figurativo», salientado na teologia
cristã a partir do Novo Testamento.
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(1) Veja-se
P. Grimal, Dictionnaire de la Mythologie grecque et romaine; P.U.F., Paris
1969, p. 123.
(2) Veja-se L. Rendu, Anthologie sanscrite, Payot 1947, p. 28s.
(3) Veja-se F. Berge, Les legende tu déluge, dans M-Gorce - R. Mortier. Histoire
général des reli-
gions. T. 5, Quillet, 1952, p. 59-101.
Fonte: “Homem, quem és tu? – As origens do Homem (os onde
primeiros capítulos do Génesis)”, Pierre Grelot, Difusora Bíblica,
Cadernos Bíblicos, 4 (texto editado) | Imagem