A Paixão segundo São Lucas

Jesus crucificado, com Maria, Sua Mãe, e o apóstolo João


Para entrar na narração de Lc., não basta lê-la, mas é preciso meditá-la, como faziam os dois discípulos a caminho de Emaús, quando palavra e presença de Jesus que lhes explicava as Escrituras, lhes punham o coração a arder.

Por este caminho doloroso, Jesus caminha ao nosso lado, mesmo que os nossos olhos sejam ainda incapazes de O reconhecer.

Toda a sua narração está penetrada de delicadeza e ternura pelo seu Senhor Jesus.

Ele não foi capaz de referir certos pormenores demasiado dolorosos: não diz que Jesus foi flagelado; Judas não beija Jesus, «aproxima-se» apenas para o beijar...

Lucas conhece, no entanto, a amplitude da luta terrível que se trava entre Jesus e o mal; a paixão é o combate derradeiro e decisivo. Jesus sai dele vencedor pela Sua paciência, vocábulo que não traduz bem o sentido do grego hypo-moné, que evoca a atitude do crente que «resiste» ou «aguenta» na provação, porque é sustentado por Deus (Cf. Lc. 8,16).

Toda a paixão é interiorizada. O combate decisivo tem lugar em Getsémani: é nesta luta interior agonia que corre o sangue de Jesus.

Reconfortado por Deus, como outrora Elias (1 Re 19,5s), Jesus sai vencedor e pode, sereno agora e abandonado nos braços do Pai, esquecer o Seu próprio sofrimento para estar inteiramente disponível para os outros:

- acolhe Judas com delicadeza,

- cura a orelha do criado,

- toca o coração de Pedro com o Seu olhar (22,61),

- fala às mulheres que lamentam a sorte d'Ele,

- perdoa aos seus esbirros,

- promete o paraíso ao ladrão...

Jesus é o mártir cuja força e bondade são tão grandes, que transforma mesmo os seus esbirros e os que o condenam: Pilatos, três vezes seguidas, proclama-o inocente, como as mulheres, o povo, o ladrão, o centurião...

Jesus pode morrer tranquilo.

O grito que dá na cruz não é já o grito do sofrimento humano perante a morte, mas sim a oração vespertina de todo o judeu: «Nas tuas mãos entrego o Meu Espírito»; mas Jesus introduz a Sua oração com a palavra que define a Sua extraordinária intimidade com Deus: «Pai»

Deste modo, Lucas convida-nos a entrarmos com Jesus na Sua Paixão, a reconhecermos com Pedro a nossa fraqueza e a sentir sobre nós o olhar de perdão do Senhor, a levarmos a Sua cruz como Simão de Cirene, a nos abandonarmos, com Ele, nos braços do Pai.

A ceia (22,14-38) é, antes de mais, o jantar de despedida onde Jesus manifesta a Sua confiança em Deus e dá as derradeiras instruções aos discípulos.

É também o gesto profético pelo qual se exprime o sentido da Sua morte de mártir: a inauguração da Nova Aliança

A agonia seguida da prisão (22,39-53) é o momento decisivo em que Jesus sai vencedor do poder do mal.

Novo Elias reconfortado por Deus, mergulha na noite da paixão, tranquilo, inteiramente abandonado à vontade do Pai.

O processo perante o tribunal judaico (22,54-71) principia com o relato da negação de Pedro.

Lucas quer dizer-nos: «Se não podes seguir a paixão como um santo. podes ao menos segui-la como um pecador indultado. O olhar de Jesus pode sempre fazer nascer em ti um ser novo».

Lucas divide em duas a pergunta do sumo sacerdote. Desde modo, Jesus proclama claramente que é o Cristo e o Filho de Deus.

No decurso do processo perante o tribunal romano (23,1-25), Pilatos, por três vezes, declara que Jesus é inocente.

O relato da comparência perante Herodes quer dizer-nos, sem dúvida, que não podemos interessar-nos por Jesus por simples curiosidade.

No calvário (23,26-49), Jesus declara a Sua inocência às mulheres que choravam por Ele, e consola-as. Pede ao Pai que perdoe aos Seus esbirros. Abre o paraíso ao ladrão que tem confiança bastante para o chamar com o Seu nome próprio e morre, em paz, nas mãos do Pai.

A sepultura (23,50-57) é preparada com afecto pelas mulheres. Mas com todos estes aromas e perfumes querem conservá-Lo na morte. Não sabem ainda que já «amanhecia o sábado» (v. 54) e, melhor ainda, amanhecia a ressurreição.

A paixão dos discípulos

Lede agora as diferentes paixões de discípulos que Lucas elaborou com o mesmo esquema:

- a paixão da Igreja torna presente a de Cristo (Act 4,23-31);

- Estêvão é condenado pelos mesmos motivos; morre perdoando, de olhos fixos no Ressuscitado (Act 6,8-15.54-60);

- Paulo «sobe a Jerusalém», como fez o seu Mestre, para aí dar testemunho (Act. 20,22s; 21,11).

In “Para ler o Novo Testamento”, Etienne Charpentier, Editorial Perpétuo Socorro / Difusora Bíblica - 2ª edição (texto editado e adaptado) | Imagem