A propósito de Adão: O poligenismo será compatível com a fé?

Em Gn 2-3, fala-se do homem e da mulher.

A partir de Gn 4, 25, Adão (palavra que significa homem) converte-se em nome próprio.

Para representar a origem da raça humana, o autor recorreu portanto, ao processo convencional dos epónimos, que personifica a origem dos grupos (clãs, nações, cidades, etc.), dando o seu nome a um antepassado hipotético: Atena, por exemplo, é uma deusa grega que se supõe ter dado o seu nome a Atenas.

Do mesmo modo, Gn 10 apresenta-nos uma genealogia de epónimos em que ninguém pensa ver indivíduos históricos.

Segundo este processo, falar de «Adão» significa o mesmo que falar do homem.

Gn 2-3, tal como Gn 1, representa convencionalmente a origem do género humano sob a forma dum casal.

O Novo Testamento não faz mais do que recolher esta apresentação (cf. Mc 9, 6-8; Rom 5, 12-21; I Cor 15, 45-48; 2 Cor 11, 3).

Portanto, não se pode procurar ali um «quadro» histórico das origens do homem, nem um ensinamento direto sobre o aspeto biológico da questão.

Mas todos estes textos, mediante este processo, insistem claramente na unidade do género humano: unidade de vocação, de condição e de destino, de inserção no plano de Deus que tem como horizonte final a realização da salvação.

Esta afirmação da unidade humana dá-se por suposta no Novo Testamento.

Ali mostra-nos, em Jesus Cristo, como aquele que vem restaurar esta unidade; n'Ele, Deus quer reduzir todas as coisas à unidade (Ef 1, 10), romper a barreira entre os judeus e os pagãos para fazer deles um único povo (Ef 2, 13-16).

Tal é o sentido da apresentação de Cristo como «novo Adão» (1 Cor 15, 45-49; Rom 5, 12-21), princípio duma humanidade nova (2Cor 5, 17; Ef 2, 15).

Mas Cristo só o pôde realizar, porque, antes de tudo, se inseriu na humanidade e porque esta possuía aquela «unidade desfeita» que lhe vem das suas origens. Temos aqui uma afirmação teológica.

Mas terá ela fundamentos biológicos e sociais?

Durante muitos séculos deu-se a esta questão uma resposta simples: olhava-se Adão como uma personagem tão histórica como David ou Jesus; a unidade do género humano era pois assim fundamentada: todos descendemos de um único casal primitivo.

Duma forma matizada, a encíclica «Humani generis», de 1950, situava-se dentro desta perspetiva: «Não se vê como uma opinião deste género (o poligenismo) seja compatível com o que propõem as fontes da verdade revelada e os atos do magistério da Igreja a propósito do pecado original».

Este documento tinha dois pontos fracos:

1.- em matéria exegética conservava a leitura «historicizante» de Gn 1-3 que, certamente, se deve pôr de lado;

2.- em matéria antropológica não distinguia entre «Polifiletismo» e «Poligenismo», (1) e não considerava a unidade humana a não ser no plano biológico, sem examinar a questão do seu aspeto social.

Que pensa acerca disso a ciência?

Para a ciência, a origem da nossa raça é, ainda, um enigma a decifrar.

Os biologistas inclinam-se atualmente mais para a hipótese do monofiletismo: dum só tronco teria saído um grupo (ou talvez vários) que teria dado origem, por «mutação», a uma nova espécie, a espécie «humana».

Quanto à exegese, ela reconhece que a revelação afirma fortemente a unidade humana, colocando a história da nossa raça ao nível da unidade quebrada.

Mas não lança nenhuma luz direta sobre as modalidades da sua realização original:

- unidade biológica baseada num só casal mutante, ou unidade social fundada sobre um grupo de «mutantes» que formava já uma sociedade (poligenismo),

- ou unidade de convergência que resulta do reagrupamento operado entre vários grupos de «mutantes» (polifiletismo)?

O essencial não é escolher à priori entre estas modalidades, teoricamente possíveis do ponto de vista científico, mas sim constatar que todas têm de desembocar na consciência viva duma unidade necessária (por ser constitutiva da raça) e impossível ao mesmo tempo (porque contrariada pelo estabelecimento da raça na sua condição pecadora) (2).

A paleontologia humana, por outro lado, não nos pode dizer ainda, na situação atual das investigações, a que nível é preciso colocar a hominização propriamente dita, isto é, a existência duma «consciência de si», que implica a possibilidade duma experiência moral e espiritual por muito «primitiva» que se suponham.

Portanto, é prudente não intentar um novo «concordismo», ainda que seja útil compreender como é que as investigações antropológicas possam estar de acordo com as exigências da fé. (3)

*****

(1) «Monogenismo»: todos descenderíamos dum só casal. «Poligenismo»: descenderíamos de vários casais os quais provêm todos dum mesmo tronco (ou phylums) diferentes (no tempo ou no espaço).

(2) Por isso torna-se divertida essa objeção: Adão nunca existiu!

De uma forma um pouco simplista, poder-se-ia dizer: o homem não é eterno, teve um começo. Para designar esse começo da humanidade, a Bíblia escolheu uma representação convencional: «Adão», ou seja, o Homem.

Essa representação tem um valor teológico: quer indicar o sentido desse começo e a sua relação com a situação em que estamos nós mesmos. Mas o que há que pôr concretamente sob a representação já não depende diretamente da fé; que a ciência o procure!

O sentido religioso de «Adão» continua a ser o mesmo que os sábios nos convidam a pôr sob essa imagem: um casal tirado diretamente do «pó da terra», ou um casal aparecido no fim da evolução das espécies animais ou vários casais chamados a viver em sociedade;

Deus continua a ser «criador», sejam quais forem as modalidades da criação.

(3) Uma consideração elementar deste problema pode-se ver em P. GRELOT, Reflexions sur le problème du péché originel. Casterman, 1968, pp. 18-23; 26-28; 57-61; 71-106.

Fonte: “Homem, quem és tu? – As origens do Homem (os onde primeiros capítulos do Génesis)”, Pierre Grelot, Difusora Bíblica, Cadernos Bíblicos, 4 (texto editado) | Imagem

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