A Paixão de Jesus segundo São Marcos
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A Última Ceia, Andrea del CastagnoIgreja de Santa Apolónia, Florença |
“Deve ter
existido muito cedo um relato da Paixão de Jesus que ia da prisão à sepultura.
Os quatro evangelhos retomam este relato, dando-lhe, no entanto, cada um, a sua
tonalidade própria.
Marcos
dirige-se aos não-crentes e quer levá-los a proclamarem com o pagão ao pé da
cruz: Jesus é verdadeiramente Filho de Deus!
Ao narrar os
factos, sem os preparar, parece que nos quer chocar: assim compreendemos
melhor, com ele, como a realização do projecto de Deus é desconcertante para o
homem.
A cruz
escandaliza. E, no entanto, é nela que se revela o Filho de Deus!
O silêncio de Jesus durante a Sua Paixão é impressionante.
Jesus sabe que os
homens são «estúpidos» perante o Seu mistério, que correm o perigo de entender mal.
Por isso, durante o Seu ministério, sempre se recusou a dizer quem era.
Agora que está
condenado, que já não existe o perigo de interpretarem os seus títulos como um
desejo de poder, aceita levantar um pouco o véu.
Após a Sua
prisão e apesar de O atormentarem com perguntas, apenas três vezes abre a boca:
- diante do Sumo
Sacerdote declara-Se Messias/Cristo e Filho do homem;
- diante de
Pilatos, reconhece que é Rei dos Judeus;
- na cruz
retoma a lamentação do Servo sofredor de Isaías, tomando sobre Si
todo o sofrimento e toda a angústia do mundo: «Meu Deus, porque me abandonaste?».
A solidão
de Jesus revela-se, em Marcos, em toda a sua dureza: Ele avança
sozinho, abandonado de todos, renegado por Pedro, na noite da cruz.
É aceitando
segui-Lo até lá que o discípulo pode proclamá-lo Filho de Deus.
Com a conspiração
contra Jesus (14,1-2), o conflito entre Ele e os príncipes dos sacerdotes
atinge o seu paroxismo: Jesus, a partir deste momento, está condenado à morte;
e Ele sabe-o.
Durante a
refeição, em casa de Simão (14,3-9), uma mulher derrama-Lhe perfume na cabeça;
Jesus entende aquela ação como a celebração da Sua sepultura: É, portanto, com
toda a lucidez que Ele entra na Sua Paixão.
O relato da Sua
Ceia de despedida (14,22-25) está enquadrado pelo anúncio da traição de
Judas (14,17-21) e da negação de Pedro (14,26-31).
Jesus, por
conseguinte, conhece os acontecimentos; é Ele quem dirige a Sua Paixão
(14,10-16).
Na Ceia,
oferece o Seu Corpo e o Seu Sangue, num despojamento total, sabendo que do
homem não pode esperar nem reconhecimento, nem fidelidade...
O relato da
instituição, muito próximo do de Mateus, retoma o texto litúrgico das
celebrações das Igrejas palestinianas.
No Getsémani,
Jesus está angustiado, prostrado (14,32-42).
Sendo
plenamente homem, tem medo da morte. O nome que ele grita a Deus como um apelo:
Abba! Pai! ilumina, por instantes, esta cena trágica.
Quando o
prendem, todos O abandonam (14,43-52), mesmo o jovem que tenta segui-Lo, mas
que acaba por fugir nu.
Esta palavra
que conclui o relato dá o tom: Jesus entra totalmente despojado na Sua Paixão.
E o discípulo que, no baptismo, desce nu à piscina, sabe que também é este o
caminho que deve seguir.
Perante o tribunal
dos Judeus (14,53-64), Jesus - a única vez em Marcos - proclama que é: Messias,
Filho do homem, glorioso. Mas tudo desmente aparentemente esta afirmação: os guardas
riem-se d'Ele (14,65); Pedro renega-O (24,66-72). Jesus permanece calado.
Perante o tribunal
romano (15,1-15), Jesus declara-Se Rei dos Judeus, e os príncipes
dos sacerdotes exigem a Sua morte... O Seu Rei é coroado de espinhos
(15,16-20)!
A cena do
calvário (15,21-41) retoma o tema dos dois processos: o título de Rei dos
Judeus é recordado entre duas menções da crucifixão (v. 25-27) e os príncipes
dos sacerdotes zombam da Sua pretensão de ser o Cristo.
Mas é morrendo
abandonado de todos, aparentemente mesmo do Pai, é carregando sobre Si todo o sofrimento
humano como Servo sofredor, que Jesus revela de que modo é Cristo
e Rei.
O pagão
convida-nos a conhecê-Lo como Filho de Deus.
E com o enquadramento
do seu relato, segundo as horas da oração cristã (tércia, sexta, noa, v.
25.33.34), Marcos convida-nos a celebrá-Lo na fé.
O relato da sepultura
decorre calmo (15,42-47). Tributam a Jesus as honras derradeiras. E a noite do sepulcro
é a noite da espera.”